Eu não me fiz feminista porque li livros, ou participei de debates. Eu li livros e participei de debates para compreender o porquê do mundo onde eu vivia ser tão hostil a mim. Eu queria entender, porque os homens da minha classe social, do meu convívio, eram tão ignorantes, muitos até com um certo grau de estudo próximo ao meu, outros até eram artistas, poetas, músicos. Eu vou relatar a você algumas mulheres que foram minhas amigas de adolescência, e a vida destruída que tiveram, pelo casamento.
Quando se está na adolescência é natural querer encontrar um amor, se casar, e partir para aquilo que te apresentam como sendo a vida adulta. Mas segue abaixo em poucas linhas o que vi:
(os nomes foram inventados para preservar as identidades.)
ANA: depois da lua de mel, foi a minha casa conversar com a minha mãe. Minha mãe era uma espécie de mulher com experiência e sem grandes preconceitos para falar de sexo. Ela então mostrou, mordidas profundas em todo corpo, parecia que tinha sido atacada por um pitbull, e ela só queria saber, se era isto mesmo que era sexo.
Marcia: Os gritos da família ouvidos por todo o quarteirão, após uma cirurgia (naquela época entregavam as anestesias que sobravam para o paciente). Ana havia tomado e cortado os pulsos. Motivo: Não era mais virgem e se casaria em uma semana, mas não havia contado ao noivo. Se contasse teria sido apedrejada, não contando, ele se despencou no caixão dizendo que perdoaria.
Rosana: Casou se virgem, aos 19 anos, na primeira gravidez perdeu a criança, na segunda pediu ajuda, havia perdido por causa de uma surra. A ajuda familiar veio em forma de apoio para ela suportar, porque ruim com ele pior sem ele. As surras não eram tão pesadas.
Carolina: seduzida pelo patrão tinha um filho dele, morava num casebre de madeira e aos finais de semana, o menino ia para a casa do pai, que pagava um salário-mínimo de pensão. Lá jogava vídeo game, nadava na piscina, e comia coisas que jamais teria. Detalhe, era considerado um pai muito responsável, e que obrigação ele teria? Afinal, um bastardo assumido, ele deveria agradecer a Deus.
Amélia: casou-se se virgem, aos 18 anos, seu marido fazia faculdade, o que deixou todos com inveja. Durante 10 anos foi xingada de vagabunda, buceta fedida, burra. Aos 28 anos arrumou um amante, e manteve o marido, ciente em casa. O bosta não saia da casa, porque morreria de fome. Tinha largado a faculdade, não trabalhava e quem os sustentava era a Amélia e sua venda de roupas em boates da região. O Amante ajudava um pouco. Agora era chamada de vagabunda por toda a família.
Parte II |Eu não me fiz feminista porque li livros, ou participei de debates.
No texto passado falei sobre como busquei conhecimento para entender por que os homens da minha classe social odiavam as mulheres. E foi buscando conhecimento que passei no vestibular e me vi então rodeada desta gente inteligente, moderna e sincera. Sentiu a Ironia? Pois é, se a faculdade me serviu de alguma coisa, foi para desculpar aqueles “ignorantes” com quem eu havia crescido. Na efervescência dos anos oitenta, a UEL era uma espécie de ilha da modernidade, mas, ledo engano. A primeira coisa que percebi nos companheiros de classe era a distinção, diferente dos meninos da vila que buscavam “uma moça honesta, bonita e trabalhadeira”, os meninos da facul tinham complexo de príncipe encantado, só uma mulher mereceria seus “cuidados” a PRINCESA. Eu sei que parece estranho, mas na minha infância periférica esta coisa de princesa não tinha espaço, éramos quando muito “honestas e trabalhadeiras”, na verdade as meninas e os meninos da periferia usavam a roupa que fosse doada. Dividíamos tudo e não era difícil ver um amigo com shorts estampado de florzinha, melhor que pelado.
Neste período observando os meninos que eu idealizava nos meus sonhos de amor: culto, inteligente, educado (assim como eu), pude perceber e perdoar os meninos da periferia. Sim, estes meninos citavam pessoas importantes, e transmitiam novas ideias, tinham o futuro brilhante nos olhos, mas para eles, assim como para os meninos da periferia, a mulher era menos. E só “a princesa” merecia cuidados, contanto que ficasse um passo atrás. A princesa estava ali para admirá-los, elogiar seus feitos, esperar que eles voltassem das aventuras como uma Penélope resignada ao seu papel.
E eu? Eu que queria me aventurar junto, queria cruzar fronteiras, escrever o que fosse proibido. Falar coisas que não se diz quando se tem o meu gênero. Eu queria coisas que também ali eram proibidas ao meu gênero. Eu perdoei os meninos da minha classe social, mas não perdoei os intelectuais machistas. Sabe por quê? “A inocente não peca”. Os homens da minha classe social quase nada sabem, mas um intelectual machista, é só um oportunista. Sabe a verdade, mas prefere manter o discurso que lhe é conveniente.
Parte III | Nós não criamos filhos machistas, mas a sociedade cobra isto deles.
“O machismo tira dos meninos o direito de ser frágil, de chorar, de pedir ajuda.”
Coube a mim ser mãe de dois meninos, e tia de mais seis, para entender o universo dos meninos, com a lupa dos que amam, e o conhecimento das mulheres que estudaram estereótipos e regras do gênero profundamente. Sim sou uma feminista que não odeia os homens, simplesmente porque não pode odiar aqueles a quem viu crescer, a quem viu a sociedade transformar em algo estranho.
Digo isto porque, nem eu nem minhas irmãs, e muito menos minhas amigas, somos machistas, ao contrário, somos revolucionárias em nossos comportamentos, quebramos várias regras do nosso gênero e é natural que ao constituir nossas famílias fossemos diferentes. Nossos meninos são dos mais variados tipos: alguns estudam muito, outros são batalhadores, e outros são excelentes nos trabalhos domésticos.
De uma maneira em geral estes meninos cresceram com “uma mãe” atípica, fora das convenções e das regras de comportamento exigidas para uma mulher, no entanto ao adentrarem a adolescência começam a perceber estas regras para o seu próprio gênero. Com mães tão distintas e revolucionárias não era de se esperar que eles também fugissem as regras? Mas não é o que ocorre, ou que vi acontecer.
Não temos gay (ao menos não assumidos) na família, e vou falar particularmente dos meninos que se assumem héteros. O que pude perceber claramente é que a partir de uma certa idade a sociedade machista começa a cobrar comportamentos, e eles podem definir futuros. A forma como se vestem, como se sentam, como falam, tudo tem uma lupa social em cima. Até mesmo os amigos ou parentes “modernos” começam a questionar a sexualidade se comportamento não for o “adequado” para macho.
Os que sofrem mais são os meninos que fogem ao estereótipo “grosseiro”. Ser refinado, gostar de leitura, em um país onde ser “homem” é sinônimo de “grosseria” é tão complicado quanto ser mulher. Sim, porque se ser “não feminina” pode te deixar de fora da seleção do amor, ser “não masculino”, também. Meninos não “masculinos” sofrem a pressão social e aos poucos vão se moldando para serem aceitos. Meninos não “masculinos” são mais assediados e estuprados do que os “meninos machos”. Nas famílias mais modernas basta a voz fina ou gostar de gatos e não de cachorro para todos gritarem “é gay”, basta não comer todas que “é gay”, dito assim até parece uma benção, afinal eles aceitam.
Como pode nossa sexualidade ser resumida a comportamentos? E eu sou franca, como mulher hétero questiono muito quando um gay diz: “eu sempre gostei de maquiagem e salto”, é a isto que se resume “ser mulher”? Ou ainda, meninos são biologicamente mais fortes, sim certamente na época das cavernas, porque atualmente há homens que não conseguem trocar um pneu, coisa que eu sei fazer.
Questionar isto é a base para a mudança que queremos. Não me resuma, não resuma minha sexualidade ao meu comportamento e gostos. Não resuma homens a forma como eles se vestem ou se comportam. E para os meninos um recado, não deixe que resumem sua sexualidade a brutalidade do macho.
MENINOS REVOLTEM-SE
O machismo tirou de vocês o direito de serem completos. De serem fortes e frágeis, o direito de chorar, de amar com delicadeza, de cuidar.
Vivemos em uma sociedade que quer que todas as borboletas sejam fêmeas, e todos os cavalos sejam machos, mas não é assim. A natureza é completa, experimente ser “masculino e feminino”, “forte e frágil”, e nunca mais sentirá esta falta de completude.
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